Marmitex | Edição 251 | IA potencializa tanto quanto emburrece?
Toda essa produtividade vale nossa presença?
Esta é a 251ª edição do MARMITEX, publicado desde janeiro de 2020.
A cada duas semanas, compartilho dicas de filmes, séries, livros, artigos, fotografia, discos, podcasts e mais. Sem um tema fixo. O foco é no repertório compartilhado, transitando por uma variedade de assuntos.
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NESTA SEMANA
A dúvida que pesa antes mesmo do café
Tem dias que acordo e já sinto o peso dessa pergunta no peito. A inteligência artificial está em todo lugar: ajuda, acelera, facilita. Mas também emburrece, não é? Talvez mais como uma atrofia. Assim como nosso senso de orientação, depois do GPS e Google Maps, ou nossa memória para números de telefone, depois da agenda automática.
A mesma ferramenta que resume um relatório em segundos pode nos deixar preguiçosos demais para pensar por conta própria. E aí fica a dúvida: estamos ganhando ou perdendo alguma coisa essencial no processo?
Juro que não é paranoia, mas uma inquietação real sobre o que significa ser produtivo quando você nem sabe direito se aquilo que produziu saiu da sua cabeça ou da máquina.
A dívida cognitiva que a gente nem percebe
Um estudo recente conduzido por Zhang e colegas no MIT jogou luz sobre essa tensão. Colocaram 54 pessoas para escrever ensaios em quatro sessões. Um grupo usou apenas ChatGPT. Outro, buscadores como o Google. O terceiro grupo escreveu sem nenhum apoio.
Durante o processo, os pesquisadores mediram a atividade cerebral dos participantes com EEGs e avaliaram memória, autoria, qualidade do texto. O grupo que usou IA apresentou menor ativação neural, menor conectividade entre áreas do cérebro e, no fim, nenhuma lembrança concreta do que havia escrito. Literalmente, escreveram sem se envolver. Produziram conteúdo sem passar por ele.
Esse fenômeno foi batizado de "cognitive debt" = uma dívida cognitiva que se acumula quando a gente terceiriza a elaboração, mas continua assinando o produto final. A IA faz o trabalho, e a gente leva o crédito. Mas sem o esforço, o cérebro não registra, não aprende, não cresce.
📚 Your Brain on ChatGPT — Zhang et al., MIT (2024)
Nem vilã, nem heroína. Mas perigosa quando vira atalho
O analista Alberto Romero, que mergulhou nos dados, explica que não se trata de um juízo moral. A IA não é vilã. O que preocupa é o modo como a usamos: como atalho, como automatismo, como substituto de presença. O que começa como apoio vira vício. A performance aumenta, mas a compreensão despenca.
🧠 MIT Study: Using ChatGPT Won’t Make You Dumb (Unless You Do It Wrong) — por Alberto Romero
A média não sustenta mais ninguém
O que estamos vendo é a democratização da mediocridade, desafabou Lucas Abreu em sua newsletter. Para ele, IA eleva os medíocres, empacota os medianos e torna os excelentes indistinguíveis da média. Tudo ganha polimento, mas perde identidade.
Só que há uma coisa que a IA ainda não consegue simular: a diferença legítima. A voz que carrega repertório, obsessão, consistência. A verdade incômoda é que, nesse novo jogo, a média não sustenta mais ninguém.
🔥 A Democratização da Mediocridade — por Lucas Abreu
O texto perfeito que você não escreveu
Jon Kolko pediu ao ChatGPT que comparasse dois modelos de design. A resposta que recebeu parecia perfeita: clara, elegante, precisa. Soava como ele, com o mesmo tom, ritmo, vocabulário, estava tudo ali. Mas o problema é justamente esse. Não foi escrito por ele, e isso o desconcertou. Se a máquina escreve como você, sem você… o que resta da sua autoria? A experiência virou um impasse: aquilo era ou não era seu pensamento?
✍️ ChatGPT Writes Me Better Than I Do — por Jon Kolko
Liderança sem pensamento é só presença digital
Essa desconexão entre autoria e produção não é um problema só de quem escreve. Está se espalhando para quem lidera, quem decide, quem influencia. André Turquetto escreveu sobre o empobrecimento intelectual da liderança. Um fenômeno sutil, mas perigoso: líderes que acessam muito conteúdo, mas digerem pouco. Executivos que opinam com velocidade, mas formulam com superficialidade. Que vivem para estar visíveis, mas deixaram de estar presentes.
📉 O silencioso empobrecimento intelectual da liderança — por André Turquetto
O efeito Cannes: quando tudo é polido demais para ser verdadeiro
A performance chegou ao limite em Cannes este ano. Casos inflados, métricas frágeis, IA usada como truque para justificar premiações. A fronteira entre realidade, edição, pós-verdade, criatividade e reprodução manipulada virou um borrão. No meio disso tudo, fica a pergunta: onde está, de fato, o mérito do trabalho criativo? E alguém se importa com isso?
Mas o estrago não está só nas premiações.
Está na linguagem do dia a dia, no jeito como falamos e nos apresentamos. Um estudo do Max Planck Institute analisou quase 280 mil vídeos acadêmicos no YouTube e mostrou que, nos 18 meses após o lançamento do ChatGPT, palavras como delve, realm, adept e meticulous passaram a ser usadas até 51% mais. São palavras que a IA prefere e que, sem perceber, passamos a usar como se fossem nossas.
A jornalista Sara Parker alertou: a IA não só molda o conteúdo, ela infiltra nossa voz. Aos poucos, passamos a soar escritos. E, pior, cada vez mais iguais. Quem fala não percebe, mas quem ouve, sente. Surge a dúvida: tem alguém aí?
O que transmite confiança não é só clareza. A presença está nos tropeços, vícios de linguagem, silêncios e improvisos. Como explica o pesquisador Mor Naaman, há três sinais que a IA ainda não simula: o de humanidade, o de esforço e o de habilidade. A frase perfeita pode parecer inteligente, mas soa oca, vazia. E quando tudo parece automático, o vínculo se rompe. A gente deixa de confiar no texto e, aos poucos, em quem escreveu.
🗣️ You sound like ChatGPT — por Sara Parker (The Verge)
IA como provocação, não como atalho
Nem tudo está perdido. Mas talvez a gente precise mudar o jeito como começa. Anne-Laure Le Cunff sugere que a inteligência artificial não deveria ser o ponto de partida, nem a responsável por fechar o raciocínio. Ela pode provocar, expandir, questionar, mas quem precisa pensar somos nós. A ideia é simples: escreva primeiro. Com seus erros, dúvidas, pausas. Depois, se quiser, peça ajuda. Quando você começa pelo prompt, abre mão do processo. E sem processo, não há aprendizado, só execução. Ela propõe cinco caminhos para manter o cérebro presente:
Fique envolvido ativamente. Não deixe a IA pensar por você. Use como apoio, mas mantenha o esforço cognitivo. Ele é sinal de que você está, de fato, aprendendo.
Use a IA para desafiar, não responder. Pergunte o que está faltando, o que ficou superficial, quais contradições você ainda não percebeu.
Escreva antes, refine depois. Comece no papel, na tela em branco, na confusão de ideias. Depois, edite com apoio da ferramenta.
Evite a dependência inconsciente. Nem tudo precisa passar pela IA. Quanto mais você terceiriza, mais se distancia da sua própria habilidade.
Experimente e observe como se sente. Teste diferentes formas de uso e perceba o efeito em você. Há mais clareza? Mais automatismo? Você saiu melhor do processo?
🧠 Is ChatGPT really rotting our brains? — por Anne-Laure Le Cunff
Curiosidade como resistência cognitiva
Le Cunff vai além e defende a curiosidade como antídoto. Um estado que ativa dopamina, amplia a memória, reorganiza o cérebro. Ser curioso é continuar presente mesmo quando não há resposta imediata. É tolerar o vazio, o rascunho, o silêncio. É resistir à tentação da resposta perfeita em dois segundos. É reaprender a perguntar.
🔍 How curiosity rewires your brain for change — por Anne-Laure Le Cunff
O que ainda vale preservar?
E talvez esse seja o ponto: antes de decidir como usar a IA, precisamos decidir como queremos continuar aprendendo. O que não queremos abrir mão. O que ainda faz sentido preservar.
Porque, como alertou Michael Sandel em conversa recente com Tristan Harris, a questão não é apenas o que a IA faz. É o que ela nos impede de fazer. Mesmo que entregue abundância, não entrega sentido. Mesmo que aumente a produtividade, não garante dignidade. Quando tudo é automatizado, onde está o valor do humano?
🎧 Is AI Productivity Worth Our Humanity? — com Michael Sandel e Tristan Harris
Não é sobre substituição. É sobre rendição
O risco real não é a substituição. É a rendição através da erosão lenta da presença. O desaparecimento da autoria e a repetição sem consciência. O brilho sem densidade.
A IA pode ajudar muito. Mas ela nunca vai nos substituir em ser quem somos. A menos, claro, que a gente desista primeiro.
E você? Ainda está aí?
Será que vale mesmo a pena tanta produtividade, se ela custa a nossa presença?
Não sei, mas tenho certeza de que a pergunta precisa ser feita todos os dias. Pelo menos até encontrarmos um jeito de usar essas ferramentas sem nos perdermos no processo.
BORA PARA OS LINKS?
Nesta edição as dicas e referências estão distribuídas no texto, mas também quero recomendar:
🍿 Série imperdível: MOBLAND (Paramount+)
🎥 AI Slop – Last Week Tonight with John Oliver (HBO)
No melhor estilo “rindo pra não surtar”, John Oliver expõe os bastidores das fábricas de conteúdo automatizado com inteligência artificial: repetição, superficialidade e a corrida para publicar qualquer coisa, cotato que ranqueie.
PRA ACOMPANHAR:
📚 O clube do livro voltou!
E a edição de julho já está no ar. Vamos ler juntos “Como o mundo funciona”, de Vaclav Smil — um mergulho científico (e acessível) sobre energia, indústria, civilização e o futuro do planeta. O encontro online rola na primeira semana de agosto. Quer participar? É gratuito. Só clicar e entrar no grupo de WhatsApp
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A lista de discos / álbuns favoritos, lançados em 2023, para que você concorde, discorde, descubra, curta ou ignore.
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“A distinção entre o real e o simulado é o campo de batalha contemporâneo.” — Jean Baudrillard