Marmitex | Edição 250 | Hipernormalização: aprendemos a seguir o baile?
... até porque está complicado lidar com tanto em tão pouco tempo.
Esta é a 250ª edição do MARMITEX, publicado desde janeiro de 2020.
A cada duas semanas, compartilho dicas de filmes, séries, livros, artigos, fotografia, discos, podcasts e mais. Sem um tema fixo. O foco é no repertório compartilhado, transitando por uma variedade de assuntos.
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NESTA SEMANA
Nas últimas duas semanas, aconteceu tanta coisa que nem se essa newsletter fosse diária, com edições extraordinárias e um time de 20 redatores trancados num porão à base de cafeína e ansiedade, daria conta de acompanhar.
A sensação é a de estar vivendo uma espécie de fim do mundo por partes, só que com trilha sonora de São João e transmissão simultânea do Mundial de Clubes.
O que a gente faz com a mistura de guerra de drones na Ucrânia, astronauta fake, tragédia humanitária em Gaza, Parada Gay em SP, risco de ataques nucleares {com mísseis assistidos ao vivo como se fossem show de fogos no réveillon} misturada com Cannes em clima de celebração criativa, aplaudindo as mesmas big tech que precarizam e adoecem a gente? E nós aqui, tentando parecer produtivos, estudados, com treino em dia, suplementados, fluentes em AI, navegando nesse emaranhado indigesto.
Não é ironia, nem exagero. É só quarta-feira. E a gente segue, até porque parar implicaria, talvez, reconhecer que não dá mais pra continuar como se nada estivesse acontecendo.
Foi nesse cenário meio surreal, meio cotidiano, que me mandaram um texto que parecia nomear um incômodo que já estava aqui fazia tempo.
Hipernormalização. Um conceito que nasceu nos últimos dias da União Soviética e foi depois adotado por um documentarista britânico para explicar algo que a gente vive sem conseguir explicar: quando o sistema já não faz sentido, mas seguimos atuando como se fizesse. Porque a alternativa seria encarar o vazio. E ninguém ensina o que fazer diante dele.
Não concordo com tudo. Mas daí nasceu o tema desta edição, porque talvez te ajude a nomear esse ruído de fundo que está aí, mesmo quando a vida parece seguir normalmente. Ou talvez justamente por isso.
Para quem quiser se aprofundar no conceito que dá nome a esta edição, vale ler o artigo de Gil-Manuel Hernández i Martí publicado no Outras Palavras.
📎 Hipernormalização: Barulho inaudível da ruína (PT)
Se a hipernormalização descreve um mundo que insiste em seguir como se nada estivesse acontecendo, a inteligência artificial talvez seja um dos melhores exemplos de como aceleramos sem entender exatamente em que direção.
Em vez de embarcar na euforia do “crescimento exponencial” ou no apocalipse iminente, o artigo de Silvio Meira traz uma perspectiva diferente: o cisne vermelho, um colapso criado de dentro, fruto de escolhas que parecem certas no curto prazo, mas podem desorganizar o sistema no longo.
Meira analisa como a IA generativa vem reorganizando o setor digital de forma profunda, atravessando arquiteturas técnicas, modelos de negócio, práticas de trabalho, design e até os próprios limites éticos.
No meio de tanto ruído e distração, parar pode parecer um ato extremo. Javier Giner parou. Depois de anos de autodestruição, se internou voluntariamente num centro de reabilitação, decidido a só sair quando estivesse, de fato, bem.
Eu, Viciado é o diário visual desse processo. Sem maquiagem, sem glamour de recomeço, sem lição de moral. É só um sujeito, aos 30 anos, tentando entender como chegou até ali, e o que ainda dá pra reconstruir.
Num mundo que normaliza a aceleração e disfarça o colapso como rotina, tem hora que seguir o baile já não dá.
🎬 GAZA SOUND MAN - Nesse documentário, o engenheiro de som Mohamed Yaghi percorre a Faixa de Gaza gravando os sons da guerra. A partir de quatro histórias, acompanhamos não apenas o impacto da destruição, mas também o esforço para registrar a vida que insiste em permanecer.
Pra dar uma respirada (ou talvez só nomear outra camada do colapso), esse episódio do podcast Vibes em Análise mergulha num fenômeno comum, cotidiano e, vamos admitir, cada vez mais presente: o ranço.
Tem gente que a gente simplesmente não suporta. Às vezes tem motivo, às vezes não tem. O episódio explora essa aversão difusa que vai da rixa ao bode, passando pela antipatia sem causa aparente. Fala sobre intolerância, ruído afetivo, saturação do outro e o que isso revela sobre a gente também.Porque entre guerras, colapsos e hipernormalizações, às vezes o que tira a gente do sério é só o jeito que alguém mastiga.
Se o presente já é difícil de digerir, o futuro tem provocado cada vez mais ansiedade, especialmente entre os jovens. Mas isso não significa apatia.
Durante o RIO2C 2025, o TTF Brasil apresentou o estudo “Da Futurofobia à Futurotopia”, que mapeia como as novas gerações estão percebendo o que vem pela frente.
Organizado em três camadas (íntima, coletiva e sistêmica), o estudo mostra um retrato sensível: a ansiedade domina, mas a esperança ainda pulsa. Há sede por saúde emocional, pertencimento real e propósito. Escolas parecem desconectadas, instituições não inspiram confiança, mas cresce o valor das redes colaborativas e das comunidades inclusivas.
Mais que tudo, o estudo revela uma juventude disposta a imaginar outros futuros, desde que a escuta vire estratégia e a promessa de mudança deixe de ser só discurso.
Antes de me despedir, deixo aqui uma recomendação que já apareceu no Marmitex, mas que segue atual, e especialmente pertinente nesta edição.
A série da Netflix Ponto da Virada: A Bomba e a Guerra Fria traça um panorama denso e muito bem construído sobre os bastidores da Guerra Fria, da corrida armamentista à queda da União Soviética, passando por contextos que ainda reverberam hoje: Putin, Ucrânia, OTAN, a lógica do medo e a manutenção forçada de uma “normalidade” global.
Há passagens bem emocionantes e muitos dados históricos que provavelmente passaram batido nas aulas de história.
Não é uma série leve. Tem ritmo de documentário clássico, daqueles que às vezes exigem duas ou três tentativas pra terminar cada capítulo. Mas vale a pena!
Só um aviso: o último episódio escorrega feio na vibe propaganda estadunidense. Pode pular sem culpa.
📺 Ponto da Virada: A Bomba e a Guerra Fria - Disponível na Netflix
PRA ACOMPANHAR:
O Marmitex agora tem duas playlists: uma com as favoritas de 2024 e outra com os sons que já marcaram 2025 até aqui. Atualizo toda semana com novidades. Siga, compartilhe — e, se quiser, manda sua recomendação também.
A lista de discos / álbuns favoritos, lançados em 2023, para que você concorde, discorde, descubra, curta ou ignore.
Se você não viu, vou deixar o link fixo com as minhas recomendações favoritas de 2021 e de 2022.
“O colapso é um processo, não um evento.” — Dmitry Orlov
adorei essa edição, ela dialoga bem com a minha última sobre a crise da estética... :)