Marmitex | Edição 248 | Espelho, espelho meu, sem meu post, quem sou eu?
A ansiedade performática no trabalho
Esta é a 248ª edição do MARMITEX, publicado desde janeiro de 2020.
A cada duas semanas, compartilho dicas de filmes, séries, livros, artigos, fotografia, discos, podcasts e mais. Sem um tema fixo — o foco é no repertório compartilhado, transitando por uma variedade de assuntos.
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NESTA SEMANA
O ser humano sempre precisou de três coisas para sobreviver: água, comida e aprovação social. As duas primeiras, a gente encontra no mercado. A terceira… bom, é para isso que serve o LinkedIn.
Há tempos a conversa sobre personal branding profissional mexe comigo. Depois do SXSW deste ano, entendi que não tinha mais como fugir do assunto. A cena era digna de estudo antropológico: executivos equilibrando cafés, credenciais e celulares, produzindo conteúdo em tempo real como se suas carreiras dependessem disso. Textões apressados, aprendizados embalados para viagem, tentando furar a bolha algorítmica antes que a pauta esfriasse. Sem pausa, sem digestão, sem processamento. (Veja mais em: Marmitex – Edição 243).
Como se o universo quisesse me provocar, o tema reapareceu nas últimas semanas em tudo quanto é lugar. Artigos, posts, dois episódios** do podcast ReThinking, do Adam Grant, e um episódio obrigatório do Braincast, do B9, que mergulha sem pudor na pergunta: o LinkedIn virou vitrine profissional ou teatro de vaidades corporativas?
**todos listados abaixo
Isso não é exatamente novidade. Agências de PR vendem pacotes de thought leadership como quem vende fruta na feira. A IA virou ghostwriter de gente que nem se deu ao trabalho de ser writer pra começar (o que nem sei se é bom ou ruim, pois imagino que ler essa turma sem a ajuda do ChatGPT seja pior). Fato é que aquilo que antes era território dos influencers agora contaminou de vez as dinâmicas profissionais. A autopromoção há tempos deixou de ser uma escolha. Virou método, KPI, parte do job description não oficial de qualquer pessoa que queira projetar sua relevância.
Atire a primeira pedra quem nunca se promoveu nas redes. Eu também fiz, e faço. Aliás, não só escrevo com frequência desde 2008, como usei o LinkedIn como meu principal canal de desenvolvimento de negócios, especialmente na época da consultoria. E sim, funciona. Constrói reputação, amplia alcance, abre portas. Ou melhor… funcionava. Porque a vitrine virou produto. E quando a vitrine vale mais que aquilo que ela expõe, a gente não tem mais um mercado. Temos um teatro.
O problema não está no uso. Está no abuso. Na transformação da ferramenta em fim. Na distorção da visibilidade, que antes era consequência do trabalho, e hoje se tornou, ela mesma, o trabalho.
O palco, a persona e o feed
Sempre existiu capital simbólico, política interna, influência informal, construção de reputação. Isso não nasceu com o LinkedIn. A diferença é que aquilo que antes acontecia nos bastidores, nos corredores das empresas e dos eventos, se expandiu para um palco infinito, onipresente e permanente. E esse palco, ao mesmo tempo que gera conexão, também amplia a ansiedade, distorções e uma simulação crônica de relevância.
O episódio do Braincast acerta ao expor essa ambivalência. Existe valor, sim, em usar essas plataformas com inteligência. Seja para compartilhar conhecimento, fortalecer redes ou tornar seu trabalho mais visível para quem deveria vê-lo. Mas existe também um ponto em que a narrativa engole o que ela deveria representar.
Se Guy Debord estivesse vivo, teria deletado o Tinder, ignorado o Instagram e aberto o LinkedIn só pra escrever A Sociedade do Espetáculo 2: O Retorno do KPI. Porque o espetáculo não só venceu. Ele virou o próprio trabalho. Sua identidade profissional agora não mora no que você faz. Mora no que você posta sobre o que finge que faz.
O palco mudou. Sai o corredor da empresa e entra a timeline. Sai a conversa no café e vai para o post no feed. E, nesse novo palco, a questão não é mais como melhorar o que você faz, mas como falar sobre o que você faz de um jeito que o algoritmo goste, que viralize, que te dê alcance. Ou seja, é o rabo que abana o cachorro. Não basta mais entregar. É preciso ser. Ou melhor, parecer ser.
O influencer corporativo
Hoje, narrativas não servem mais para comunicar o que você faz. Servem para sustentar uma persona que muitas vezes não existe. O dilema não é sobre estar ou não nas redes. É sobre como equilibrar a troca genuína, o fortalecimento das conexões, da comunidade e da reputação, com essa construção permanente de uma persona digital editada, polida, filtrada, desenhada para parecer mais bem-sucedida, mais inteligente e mais interessante do que de fato somos.
Todo mundo virou marca, mentor, especialista em tudo, palestrante, storyteller, keynoter, evangelista de qualquer buzzword do trimestre. E, ironicamente, o que menos se vê é gente efetivamente trabalhando. Produz-se cada vez mais, com cada vez menos. Menos reflexão, menos prática, menos profundidade e sabedoria.
Até o TED, que nasceu pra compartilhar ideias, virou um tutorial de como repetir ideias alheias com cara de quem teve um insight próprio. Quem assiste três TEDs agora vira especialista. Quem leu meio livro, vira mentor. Quem nunca fez absolutamente nada… te ensina como fazer.
A construção de autoridade deixou de ser sobre prática, repertório e entrega. Virou um jogo de volume, alcance e frequência. Não há tempo para ler, testar, aplicar, errar, refletir. E, na maior parte das vezes, nem interesse. Afinal, o algoritmo não exige profundidade e as pessoas já não têm o menos saco pra ler textão (oops).
A síndrome de Dunning-Kruger encontrou terreno fértil como nunca antes. Quanto menos alguém sabe sobre algo, mais tende a superestimar sua própria competência. E quanto mais posta, mais aparece. E quanto mais aparece, mais é percebido como pseudo-relevante. Nunca foi tão fácil simular competência sem nunca ter passado nem perto dela. Bem-vindo ao bingo corporativo. Disruptivo. Exponencial. Mindset. Propósito. Foguetinho. Mãozinha. Gratidão. 🚀 📈🧠🎯🚀🤝🙏
Aqui nasce o ciclo do 🦜palestrante-papagaio🦜, aquele que fala, mas não voa. Que repete, mas não sabe o que diz. Monta palestras inteiras com recortes da literatura de aeroporto, memes, gifs, vídeos emocionantes e uma sequência de buzzwords empilhadas como se fossem um mapa do futuro. Uma autoridade encenada que não se sustenta em prática, nem em experiência, nem em estudo. Só na forma (e na cara de pau)
Esse ecossistema virou engrenagem de toda uma indústria do conteúdo vazio e fácil, que vende justamente por sua superficialidade. E, como Theodor Adorno já havia antecipado, a indústria cultural não vende mais ideias. Vende embalagens de ideias. A autoridade não vem mais do conhecimento. Vem da segurança performada, do tom de voz, da fala clichê, da persona desenhada para parecer relevante e desejável.
Christopher Lasch, em A Cultura do Narcisismo, fez esse diagnóstico décadas antes do LinkedIn existir. O narcisismo deixou de ser patologia individual e virou modelo de sociedade. A busca desenfreada por validação, visibilidade e relevância não é defeito. É a própria arquitetura do sistema. E o influenciador, seja ele de lifestyle, de negócios ou de LinkedIn, é menos um gerador de valor e mais um zelador da própria bolha de relevância.
Mas personal branding funciona?
Spoiler do podcast The Case Against Personal Branding, do Adam Grant: Não. Ou, na melhor das hipóteses, funciona mais ou menos até o momento em que todo mundo percebe que você só sabe falar de você. E, a partir desse ponto, você não vira referência. Você vira meme. Não há nenhuma evidência robusta de que personal branding, por si só, leve a mais dinheiro, mais oportunidades ou mais sucesso. Ao contrário, existe um volume crescente de indícios de que a hiperexposição provoca exatamente o efeito oposto: ruído nas relações, alimenta rivalidades silenciosas, dispara crises de ansiedade e, mais grave, contamina a credibilidade justamente de quem mais se esforça para parecer relevante.
Isso não é teoria. Em conversas recentes com líderes, todos foram categóricos. A superexposição, na maioria dos casos, gera mais desconforto do que admiração. Desperta, desconfiança, ciúmes e aquele tipo de atrito invisível que nunca vira feedback formal, mas que te acompanha.
Se você está ocupado demais se promovendo, talvez esteja entregando de menos. Quem se vende demais pro mercado, invariavelmente, começa a valer de menos pra dentro.
O problema não é postar. É quando postar fica mais importante do que trabalhar. É quando você começa a achar que ser relevante é mais urgente do que ser competente. A autopromoção até gera algum retorno, não sejamos hipócritas, mas raramente se sustenta no longo prazo. Porque o que parecia um diferencial começa, aos poucos, a ser percebido como exibicionismo, vaidade, sinal de insegurança. E, para quem tem qualquer grau de senioridade, uma red flag, que paira sobre seu perfil.
Já no outro episódio de ReThinking, Adam Grant aprofunda essa reflexão em uma conversa com Jia Tolentino, autora de Falso Espelho. Eles dissecam o conceito do capitalismo de identidade. Essa engrenagem onde qualquer traço da nossa existência precisa ser transformado em conteúdo, performance e produto. O que antes era só uma dimensão da vida virou um projeto de tempo integral. Ser você mesmo virou trabalho precário, incessante, que exige roteiro, edição, legenda, consistência e, acima de tudo, disposição para nunca parar. Porque, se você para, você desaparece.
E é exatamente aí que mora o ponto mais perverso de toda essa dinâmica. Quanto mais você alimenta a máquina, mais ela te exige. A promessa de autenticidade se converte numa armadilha. E aquilo que deveria ser uma estratégia vira prisão.
O vício autocentrado
Então sobra a pergunta que ninguém gosta de responder. Você está construindo valor real ou só embalando uma versão editada de si mesmo? Está resolvendo problemas, transformando realidades, impactando pessoas de forma tangível ou apenas alimentando seu próprio ego através do que compartilha?
Essa talvez seja a ironia mais brutal do jogo da influência. Na sua essência, ela quase nunca está comprometida com a geração de valor para os outros. Está, na maioria das vezes, a serviço da própria manutenção do ciclo de influência de quem está no centro. O flywheel do influenciador corporativo gira pra dentro. Funciona? Sim, mas também se esgota. E funciona infinitamente melhor para quem tem conteúdo, consistência, repertório e, principalmente, alguma conexão honesta com uma realidade que vai além do próprio reflexo.
É indispensável respeitar o tempo e a inteligência de quem te escuta. Num mundo onde fake it till you make it deixou de ser ironia para virar metodologia, vender respostas dubladas virou modelo de negócio.
O professor Eugênio Bucci fecha essa conta com precisão cirúrgica. A era da celebrificação substituiu a consciência coletiva pela autopromoção crônica. E, quando tudo se torna sobre escalar, otimizar e ganhar relevância, o outro não é mais parte de um coletivo. É só mais um competidor na sua timeline.
Bora para os links?
Um texto sobre autoria, autenticidade e ilusão. A IA não matou o texto humano. Só deixou explícito que muito do que sempre lemos já era, na prática, texto de máquina. O problema nunca foi a ferramenta. Sempre foi o vazio de quem escreve sem olhar, sem repertório e sem intenção.
Contribuições de Thatiana Cappellano sobre como fazer marketing pessoal sem virar ruído. Reconheça o esforço dos outros, escolha bem seus momentos e entenda que visibilidade não substitui entrega.
Pesquisas que desmontam a ilusão de que personal branding traz mais oportunidades ou sucesso. A hiperexposição como armadilha, não como estratégia.
Quando “ser você mesmo” virou trabalho. Reflexão dolorosa e precisa sobre como autenticidade foi sequestrada pelo mercado.
Perfeito para entender (ou se enxergar) no dilema: até onde é construção de reputação e quando vira pura ansiedade performática?
E o esse post sobre a audiência?
📚 Livros e Autores citados no artigo
A espinha dorsal de tudo. A ideia de que o espetáculo venceu — e foi incorporado às identidades, ao trabalho e às relações profissionais. Você não trabalha. Você performa.
O manual sobre como marcas deixaram de vender produtos para vender promessas — e, no caminho, ensinaram pessoas a fazerem o mesmo consigo mesmas.
Quando o narcisismo deixa de ser uma patologia individual e se torna infraestrutura social. A busca por validação, visibilidade e relevância não é mais sintoma. É sistema.
A indústria cultural ensinou que autoridade não nasce mais do conhecimento, nem da prática — mas da estética, da embalagem, da pose. Performance virou método.
Talvez o livro que melhor explica a conversão da vida em conteúdo. “Seja você mesmo” virou KPI. E trabalho.
PRA ACOMPANHAR:
O Marmitex agora tem duas playlists: uma com as favoritas de 2024 e outra com os sons que já marcaram 2025 até aqui. Atualizo toda semana com novidades. Siga, compartilhe — e, se quiser, manda sua recomendação também.
A lista de discos / álbuns favoritos, lançados em 2023, para que você concorde, discorde, descubra, curta ou ignore.
Se você não viu, vou deixar o link fixo com as minhas recomendações favoritas de 2021 e de 2022.
“A promessa de autenticidade virou uma armadilha. Ser você mesmo se tornou um trabalho sem fim.”— Jia Tolentino, Falso Espelho
Ótimo texto
Excelente formato