Marmitex | Edição 245 | "Desvestir" a camisa é o futuro do trabalho?
Entre o fetiche da autonomia e o burnout institucionalizado.
Esta é a 245ª edição do MARMITEX, publicado desde janeiro de 2020.
A cada duas semanas, compartilho dicas de filmes, séries, livros, artigos, fotografia, discos, podcasts e mais. Sem um tema fixo, o foco é no repertório compartilhado, transitando por uma variedade de assuntos.
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NESTA SEMANA
O discurso do comprometimento incondicional, que por décadas sustentou a lógica do trabalho no Brasil, parece não colar mais — ao menos entre as novas gerações. Quando uma criança diz que “ser CLT é ser pobre”, não está apenas reproduzindo preconceito: está devolvendo, com sinceridade brutal, o retrato de um mercado que precarizou o vínculo, normalizou o burnout e disfarçou a exploração como cultura organizacional. O velho discurso da lealdade foi esvaziado pela realidade das demissões em massa, dos contratos cada vez mais frágeis e de uma gestão que exige entrega total, mas terceiriza responsabilidade sempre que pode. A perversidade do atual modelo de gestão é que ele estimula o sujeito a internalizar a lógica produtivista — mesmo que isso leve à exaustão psíquica.
A ideia de pertencer ainda tem valor. Mas está cada vez mais difícil pertencer a um sistema que exige tudo e devolve quase nada.
Ricardo Antunes em O Privilégio da Servidão, aponta que a nova morfologia do trabalho é marcada pela intensificação, pela hiperdisponibilidade e pela diluição dos limites entre tempo produtivo e vida pessoal. A lógica da servidão voluntária — em que o trabalhador se compromete por medo, por fetiche ou por ausência de alternativa — substituiu a antiga relação de trabalho protegida por direitos. A isso se soma o que Byung-Chul Han descreve como a era da autoexploração: quando o sujeito, seduzido pela promessa de liberdade, se transforma em seu próprio algoz — num ciclo de performance e autossacrifício permanente.
No fundo, muita gente deixou de ser funcionário para virar CEO de si mesmo — e acabou ganhando só mais responsabilidade, menos proteção e a mesma cobrança de sempre.
Silvio Lorusso chama isso de Emprecariado: a mistura entre o discurso empreendedor e a precarização estrutural do trabalho. Sob a promessa de autonomia, o trabalhador aceita jornadas intermináveis, remuneração instável e a obrigação de estar sempre visível, relevante e “vendável”. A precariedade é disfarçada de liberdade. Nesse cenário, a “marca pessoal” substitui o vínculo coletivo, e o capital simbólico do engajamento se torna a nova moeda. O sujeito não trabalha apenas — ele performa o tempo inteiro. Como observa Eva Illouz, o capitalismo emocional sequestrou até nossa forma de nos relacionarmos com o trabalho e com nós mesmos.
Some a isso o vazio de propósito descrito por David Graeber em Bullshit Jobs, que mostra como uma parcela crescente dos empregos modernos são socialmente inúteis, emocionalmente exaustivos e mantidos apenas pela inércia burocrática.
São trabalhos cuja principal função é parecer que se está fazendo algo importante — e isso gera uma angústia silenciosa. A inutilidade sentida pelo trabalhador não é falta de propósito pessoal, mas o reflexo de um sistema que produz ocupações descoladas de qualquer relevância social. Como Graeber argumenta, é a pior forma de alienação: a de saber que seu esforço não serve para absolutamente nada — mas continuar preso a ele por sobrevivência.
E não para por aí. Anne Helen Petersen, em Não aguento mais não aguentar mais: Como millennials se tornaram a geração do burnout, mostra como o esgotamento se tornou um modo de vida.
Principalmente entre os mais jovens, moldados por uma cultura que romantiza a superação contínua, a produtividade virou identidade. Ser multitarefa, estar sempre disponível e transformar cada instante em um potencial pitch virou obrigação. O problema é que a recompensa nunca vem. Petersen mostra como o burnout não é só um efeito colateral, mas a engrenagem central de um sistema que exige mais do que o ser humano consegue entregar — e chama isso de “ambição saudável”.
A matéria da Gama Revista ajuda a jogar luz sobre tudo isso: da demonização da CLT à romantização do empreendedorismo de si, passando pelo fetiche do “vestir a camisa” como instrumento de controle emocional e produtivo.
Hoje, a “dor de dono” virou o novo bordão da cultura da performance. Mas, como bem disse a pesquisadora Thatiana Cappellano, não adianta cobrar a postura de quem lucra se o modelo não permite dividir nem responsabilidade, nem resultado. E mais: segundo Cássio Calvete, a cultura da meritocracia esconde uma relação de subordinação travestida de autonomia — em que algoritmos substituem chefes, e a cobrança vem com uma interface amigável.
Entre o colapso do modelo tradicional e a miragem da liberdade empreendedora, o que está em jogo é mais do que uma escolha profissional — é o futuro da dignidade no trabalho.
E essa equação se complica ainda mais com a chegada da inteligência artificial e da automação em escala. Aaron Benanav em Automation and the Future of Work, alerta que não é a tecnologia que ameaça os empregos — é o sistema que decide o que automatizar e quem pode ser descartado. A promessa de libertar o ser humano do trabalho braçal virou, na prática, um processo de eliminação silenciosa da base produtiva, mascarado por um discurso de “requalificação” que nunca se concretiza. Ao mesmo tempo, vemos crescer a fantasia de enriquecimento instantâneo dos influencers, criptonários e performers do algoritmo — enquanto o grosso da população opera em modo sobrevivência.
Não estamos diante de um conflito entre velho e novo, mas de uma armadilha bem montada: precarização com estética de liberdade, abandono com discurso de inovação, desigualdade com filtro de “oportunidade”.
Como propõe Mariana Mazzucato em O Valor de Tudo, talvez seja hora de fazer a pergunta mais incômoda de todas: quem está realmente criando valor — e quem só captura? Porque enquanto o sistema seguir premiando escala e especulação, e punindo cuidado e colaboração, o trabalho continuará existindo — mas cada vez mais solitário, fraturado e invisível.
Talvez o que a gente precise não seja um novo discurso. Mas um novo pacto. Sobre o que importa, o que vale e o que vamos escolher preservar.
**Os livros e referências citadas aqui, já foram compartilhados em outras edições desta newsletter e estudadas ao longo do Mestrado Profissional em Inovação da FEA/USP: Transformações do Trabalho e Empreendedorismo no Mundo Contemporâneo.
Neste vídeo, uma rápida explicação de Bullshit Jobs, de David Graeber, revela como muitos de nós passamos a vida em empregos sem propósito real — e o que isso diz sobre o sistema. (EN)
Num mercado que precarizou o especialista, romantizou o “CEO de si mesmo” e agora vê a IA automatizar rotinas inteiras, a habilidade de transitar entre mundos, conectar repertórios e pensar em sistemas pode ser mais valiosa do que dominar um único nicho. Em vez de se apegar à camisa de um cargo ou à lógica de uma função fixa, os generalistas navegam a ambiguidade com mais jogo de cintura — e podem ser os poucos que ainda fazem sentido quando tudo muda rápido demais. 🔗 Every: Why Generalists Own the Future (EN)
No meio da glorificação do hustle, da ideia de que “amar o que faz” é suficiente, Scott Galloway joga luz sobre uma verdade incômoda: paixão sem competência raramente paga as contas. Num mundo em que o trabalho virou performance e promessa de realização pessoal, talvez seja hora de trocar o culto ao “propósito” por algo mais concreto — aquilo que você realmente sabe fazer bem.
🔗 Assista no YouTube: DON’T FOLLOW YOUR PASSION — FOLLOW YOUR TALENT
Nesta entrevista, Anne-Laure Le Cunff explica como a sobrecarga cognitiva afeta nossas decisões, nossa relação com o trabalho e até nossa visão de sucesso. Em tempos de hiperprodutividade, automação e pressão por performar o tempo todo, entender os scripts invisíveis que nos conduzem pode ser o primeiro passo para sair do modo automático — e recobrar o controle. 🔗: Cognitive Overload — Anne-Laure Le Cunff (EN)
Dá pra falar sobre esse tema sem mencionar Ruptura? Até dá. Mas seria ignorar um dos retratos mais brutais (e elegantes) da alienação no trabalho.
A série da Apple TV+ imagina um mundo onde você literalmente separa quem é dentro e fora do escritório. O resultado é visualmente impecável, emocionalmente sufocante e filosoficamente incômodo. Cada episódio exige digestão — muita gente leva dias pra terminar um só. Mais do que entretenimento, Ruptura mimetiza o que já vivemos e pergunta, sem rodeios, quanto da nossa vida a gente terceirizou pro crachá.
Na nova temporada ambientada na Tailândia, The White Lotus leva o conceito de “trabalhar para parecer rico” ao limite. “Buscadores de propósito” orbitam um resort de luxo onde tudo parece ser sobre autocuidado — mas nada é realmente sobre cuidado. A série expõe, com humor ácido e desconforto crescente, a falência emocional de quem vive sob o script da alta performance, da espiritualidade de mercado e da estética da abundância.
No fim, o que se vê é um espetáculo de burnout disfarçado de sucesso — um retrato da nossa era em que até o descanso virou estratégia de branding.
E (spoiler) entrega uma das melhores cenas que assisti nos últimos anos:
Pra fechar, vale ouvir o episódio “O trabalho não é o trabalho”, do Cris Dias, no Boa Noite Internet. Reflexões à beira-mar, dilemas de quarta-feira e a real sobre propósito, carreira e tudo o que a gente finge que entende. 🎧 Ouça aqui no Spotify (PT)
PRA ACOMPANHAR:
O Marmitex agora tem duas playlists para acompanhar o ritmo do ano: uma com as favoritas de 2024 e outra já com os sons que marcaram 2025 até aqui. Vamos ver até quando vai? Fica como registro histórico também ;)
A lista de discos / álbuns favoritos, lançados em 2023, para que você concorde, discorde, descubra, curta ou ignore.
Se você não viu, vou deixar o link fixo com as minhas recomendações favoritas de 2021 e de 2022.
“O emprecariado é o trabalhador que vive entre o glamour do empreendedorismo e a ansiedade da sobrevivência.”
— Silvio Lorusso, em Emprecariado
Muito bom, Paulo! Não conhecia seu trabalho e que maravilha! Estou louca par ler o livro Empresariado.
Na real, esse é um tema que muito martela minha cabeça e acabo discutindo muito em sala de aula com meus alunos. Já salvei as referências.
Muito obrigada!
Muito bom bro!